quinta-feira, 30 de outubro de 2008

margaridas enlatadas

Com olhos verdes pequenos e ouvidos tapados por fones brancos de iPod, Alice mirava prateleiras no supermercado, à procura. Sabia para quê tinha chegado até ali, mas lembrava-se do que lhe causava o maior dos desprezos dias atrás: margaridas enlatadas. Desviava-se delas e sentia calafrios ao pensar que poderia errar, ceder ao desejo consumista do menor esforço. Mas se via ali, errando pelos corredores brancos e luminosos.

Ao perceber a chegada de uma ousadia fugaz, tirou os chinelos e sentiu o gelado do piso de lajotas para que, no futuro, lembrasse daquele momento com mais clareza. Olhava ao redor e engolia com as pupilas as luzes brancas e brilhantes que, juntas, lhe causavam tanta náusea. Sabia no fundo que seu maior temor era acertar. Se atingisse o alvo, teria de enfrentar sua própria liberdade.

Sou a personificação de um bode, pensou, sem saber o real significado do que lhe vinha. Na realidade, sentia uma chatice feia sem origem aparente. Na realidade, - palavra que usava mais por força de expressão do que por crença em seu sentido - se deu conta de que vinha nas últimas horas se debatendo para controlar uma dor no peito. Não tinha percebido até então que estava se afogando no ar, parada entre as prateleiras, lutando contra a percepção da dor, que se mostrava tão suave como uma agulha penetrando músculos.

How and why and when and where to go
How and why and when and where to follow
But if you are feeling sinister
Go off and see a minister
He'll try in vain to take away the pain of being a hopeless unbeliever

Foi então que o inevitável ocorreu. Sua necessidade patológica de ver margaridas começou a lhe formigar os pés, subir pelos joelhos, coxas, virilha, genitais, barriga, seios, pescoço e, finalmente, à boca, olhos e cabelos. Uma lembrança vinha sempre nessas horas. Aqueles anos idealizados, quando tinha entre 17 e 19 anos, quando começou a usar margaridas. No início, as consumia esporadicamente, até que o prazer que elas lhe proporcionavam pareceu indispensável. Nesse tempo, elas existiam realmente. Eram plantadas e colhidas. Encontradas em parques, bibliotecas, no meio de livros, filmes, pessoas especiais, sorrisos e dias ensolarados. Em cafés e cigarros, acordes e sons de bateria.

O formigamento era um sintoma da abstinência, havia dito o medicozinho medíocre que diagnosticou o seu incômodo. Tratava-se de uma patologia comum entre pessoas que alguma vez haviam provado o cheiro, a cor e a beleza das margaridas. Pessoas que ficavam muito tempo em quarentena, sem entrar em contato com as flores, passavam por fortes crises depois que voltavam a entrar em contato com elas. Surgiam também sintomas como insatisfação crônica, ceticismo, apatia e falta de vontade de ver e de fazer.

Sim, ela admitiu. Sintomas conferem. Com um agravante: forte obsessão por ausências. Idealizar o que não está mais lá, nunca esteve e talvez nunca estará era um de seus hábitos. Criar quereres inexistentes era outro de seus hobbies. Não sabia o que queria, mas fingia que o sabia. Sabia o que não queria, o que já era um começo. A grama do vizinho é sempre mais verde, irritou-se ao perceber o quão estúpida, simplória era a sua forma de ver as coisas. Sentiu-se de novo um bode. Pertencia à classe dos pobres de espírito, porcos da alma, desprovidos de margaridas.

*

As margaridas desapareceram silenciosamente uma noite em uma semana logo depois do dia em que ela completou 19 anos. Com a discrição de damas européias de séculos passados, não deixaram rastros. Saíram de sua vida à francesa, descalças, na ponta dos pés, sem bater a porta ou permitir rangidos incriminatórios do piso de madeira. Alice, quando acordou, percebeu a ausência das flores e, desesperada, começou a procurar em todos os cantos da casa, aos prantos. Revirou as roupas de dentro dos armários, bateu na janela os tapetes empoeirados, revirou página dos livros onde as havia encontrado anos atrás, tirou os discos de suas capas de papelão. Sacudiu as cortinas, os cadernos de poesia rasgados por sua falta de confiança nas letras e em seu talento. Não encontrou e se resignou. Parou de chorar dada a falta de lágrimas gastas com exagero no início de sua dor. Até que decidiu vestir-se e ir ao supermercado.

*

Lugar semivazio, ou semilotado, para os idiotas otimistas. Prateleiras tão brancas que lhe ardiam os pequenos olhos verdes. As embalagens coloriam alguma coisa, em uma tentativa vã de dar vida à luz branca que vilipendiava Alice. Não conseguia se perceber viva, mas inerte, robótica, apática. Lesma, como uma mulher de avental, sem a sujeira da vida. Limpa, pronta para uma cirurgia. Uma executiva de taier, a falta de alma. Dolorida pela ausência de dor.

De repente, uma lata caiu-lhe nos pés. Agachou-se e viu a margarida enlatada. Arrepios tomaram conta de seus braços. Seus pêlos loiros levantaram-se, em estado de alerta. Perigo. Tentação de aderir ao mais fácil. Ao indolor. Ao mais vendido, top na lista dos 10 mais. A margarida enlatada. Tinha dinheiro no bolso. Tinha preguiça do caminho que teria de seguir se a recusasse. Olhou o relógio para esboçar algum tipo de reação. Ter mais tempo para pensar antes do ato final da covardia absoluta. O slogan do produto lhe gritava na memória: poesia, sem talento, esforço ou dor.

Um pensamentozinho, no entanto, impedia Alice de tomar uma decisão. A margarida tinha data de validade eterna. O que anulava a existência da própria margarida, soluçou. Compraria e a teria para sempre. Mas, ao mesmo tempo, nunca mais a teria. Um paradoxo que a enlouqueceu por alguns minutos.

Os dois caminhos lhe foram oferecidos ao segurar a lata. Surgiram duas alternativas que determinariam quem ela seria para o resto da vida: desistir do enlatado e perseguir sua verdade; ou correr à fila do caixa e seguir se arrastando, mas dessa vez sem angústias, dores ou incertezas, com a sensação da presença de uma arte eterna. A beleza estaria em todos os lugares, o tempo todo. Na pobreza das ruas, nos esgotos a céu aberto, no seu espírito miserável e no alheio, nas músicas ruins, nos contos e livros medíocres.

Pensou. Pensou. Hesitou. Mas decidiu. Andou apressada até a placa onde se lia ATÉ DEZ VOLUMES. E enlatou-se toda.

sábado, 4 de outubro de 2008

Lenitivo - All that magic

Não via sentido em não sentir.
Angustiava-se pelos cantos procurando pedacinhos de dor.
Pedacinhos de pranto.
Quebrou o copo, estilhaços percorreram o quarto.
Quebrou o quarto, estilhaços percorreram o corpo.
Debruçada que estava sobre o parapeito, quase poderia ver.
Debruçada que estava, quase pensou em viver.

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Sentou-se acomodada com o dia quente.
Acercou-se do que parecia paz pós remédio para as Dores.
A sonolência boa, a anestesia que não era cegueira.
Via os carros passando devagar, como se fosse domingo.
As mulheres bonitas nas calçadas, os cafés e os bebês.
Engolia as imagens como se transbordasse vida.
Era tomada pelo prazer de existir. Agradecia.
A plenitude vinha por alguns segundos e se esvaia
Sem exigir atitudes ou recompensas.