terça-feira, 31 de março de 2009

The wife

Stephan acordou assustado. Teve mais um daqueles pesadelos causados pelo excesso de cobertas. Demorara tanto para dormir e mesmo assim seu sono durara apenas três horas. Angustiava-se. Os olhos pesavam por causa das lágrimas da noite anterior, criavam gosmas nos cílios, talvez uma reação de seu corpo para mantê-los unidos, bem fechados. A claridade entrava pelos buracos da janela e ele amaldiçoava cada fresta com seu mais puro ódio.

Por que tinha de envelhecer? Sentia as costas cada vez mais tensas, como se toda a tralha estivesse ali, em cima de seus ombros. Toda a tralha de feridas que vinha carregando. Experiências que só queria apagar, como no filme do charlie kaufman. Queria esquecer as lembranças do êxtase, para não sentir falta. Uma abstinência eterna, pensou. Minha juventude foi a injeção de heroína que me tornou dependente, gritou.

sábado, 28 de março de 2009

You know we ain't that strong

Woke up this morning
Singing an old, old Beatles song
We're not that strong, my lord
You know we ain't that strong
I hear my voice among others
In the break of day
Hey, brothers
Say, brothers
It's a long long long long way

Mora na filosofia...

Caetano Veloso

quarta-feira, 11 de março de 2009

O segredo

Leila correu tão feio que sentiu vergonha de seu jeito desengonçado de ser. Sentia sempre vergonha de ter nascido, seus gestos eram calculados porque enxergava olhos que a enxergavam por todos os lados. Era um panóptico do qual não conseguia livrar-se. Seus óculos de aros pretos não impediam que tivesse campo visual para essa pseudo percepção dos olhares alheios. Corava de pensar que a tinham visto entrar no ônibus com seu correr estranho, suas gorduras balançando, seus cabelos desgovernados. Era incapaz de se sentir desgovernada. Ao contrário, parecia sempre obedecer a um governo invisível. O governo autoritário dos outros e de si mesmo. Pensou que talvez fosse egocentrismo, arrogância essa sua mania de achar que todos encaravam seus detalhes com tanta atenção. Desde criança era assim. Na escola, não gostava de se sentar na frente para não ser observada. Sentia que, toda vez, ao virar para trás, alguém teria disfarçado o olhar para não ser flagrado. Mas não eram olhares de admiração, e sim a observação minuciosa do ridículo.

Foi quando decidiu rebelar-se. Ela se conhecia e por isso pensou que a expectativa da rebelião era muito mais difícil que a rebelião de verdade. Ela costumava ser assim, sofrer por antecipação, ser feliz por antecipação. Isso a impedia de pensar o presente, estava sempre olhando para o passado ou para o futuro. Daí, seus medos colossais. Medo do porvir e do que o passado faria com o porvir. Como quando alguém está prestes a receber uma pancada na cabeça e o sabe. Como o frio na barriga quando se sabe que vai cair. Leila sabia que sofrer era um alívio tremendo. O sofrimento nunca confirmava a expectativa que ela tinha dele. Era sempre fajuto. Leila era tão exigente consigo mesma e com seus cabelos desgovernados, seu óculos fundo de garrafa, suas gorduras saltando para fora da calça, que era ainda mais exigente com a dor.

Controlou-se para tentar sentir o segundo passando. Fechou os olhos para se concentrar no baixo e na guitarra que entravam pelos fones de ouvido, no presente do presente do presente do presente. Queria receber o presente, e agradeceria. That´s why they call it present. Queria ser livre. Por alguns segundos, ouviu o que chamou de A PERCEPÇÃO PLENA DO UNIVERSO. Aqueles segundos de sabedoria compacta, que passam antes de o cérebro perceber que chegaram. Da liberdade gratuita. Como naquele dia em que viu raios de sol batendo no sofá, iluminando a poeira branca, dançando no ar. Conseguiu ouvir cada nota como viu cada poeira iluminada. Com calma, uma ausência de ansiedade só presente em seus estados de mais pura sonolência. Esse era seu segredo. Sua fórmula mágica. Só deixaria de tremer se encarasse de frente. Deixaria de tremer quando firmasse o punho e batesse forte. Se virasse para os monstros que a censuravam e dissesse FODA-SE. Não iria cair e, se caísse, o chão não era tão ruim assim.

segunda-feira, 2 de março de 2009

Clarice entrevista Hélio Pellegrino

“A psicanálise é, para mim, a ciência da libertação humana. Quem fala em liberdade humana fala sempre em comunicação e encontro. A psicanálise é, portanto, a ciência da comunicação e do encontro. O trabalho psicanalítico visa a construção de um encontro entre duas liberdades. Isto significa que a psicanálise visa o encontro entre duas pessoas, já que o centro da pessoa é a liberdade. Não há liberdade sem abertura ao Outro, sem consentimento na existência do Outro como tal e enquanto tal. Os distúrbios emocionais podem ser conceituados como limitações estruturais dessa abertura, implicando uma perda em disponibilidade com respeito ao Outro. Se minhas ansiedade básicas exigem de mim que faça do Outro um instumento do meu esquema de segurança, já não posso aceitar o Outro em sua essência de ser-outro. Vou inventá-lo à imagem e semelhança de meus temores, torno-me o eixo da referência ao qual o Outro deve referir-se e submeter-se. A psicanálise, sendo um longo convívio humano antiautoritário, é um chamamento à liberdade e à originalidade do paciente e do analista, para que ambos assumam a alegria da comunicação autêntica”.