quarta-feira, 11 de março de 2009

O segredo

Leila correu tão feio que sentiu vergonha de seu jeito desengonçado de ser. Sentia sempre vergonha de ter nascido, seus gestos eram calculados porque enxergava olhos que a enxergavam por todos os lados. Era um panóptico do qual não conseguia livrar-se. Seus óculos de aros pretos não impediam que tivesse campo visual para essa pseudo percepção dos olhares alheios. Corava de pensar que a tinham visto entrar no ônibus com seu correr estranho, suas gorduras balançando, seus cabelos desgovernados. Era incapaz de se sentir desgovernada. Ao contrário, parecia sempre obedecer a um governo invisível. O governo autoritário dos outros e de si mesmo. Pensou que talvez fosse egocentrismo, arrogância essa sua mania de achar que todos encaravam seus detalhes com tanta atenção. Desde criança era assim. Na escola, não gostava de se sentar na frente para não ser observada. Sentia que, toda vez, ao virar para trás, alguém teria disfarçado o olhar para não ser flagrado. Mas não eram olhares de admiração, e sim a observação minuciosa do ridículo.

Foi quando decidiu rebelar-se. Ela se conhecia e por isso pensou que a expectativa da rebelião era muito mais difícil que a rebelião de verdade. Ela costumava ser assim, sofrer por antecipação, ser feliz por antecipação. Isso a impedia de pensar o presente, estava sempre olhando para o passado ou para o futuro. Daí, seus medos colossais. Medo do porvir e do que o passado faria com o porvir. Como quando alguém está prestes a receber uma pancada na cabeça e o sabe. Como o frio na barriga quando se sabe que vai cair. Leila sabia que sofrer era um alívio tremendo. O sofrimento nunca confirmava a expectativa que ela tinha dele. Era sempre fajuto. Leila era tão exigente consigo mesma e com seus cabelos desgovernados, seu óculos fundo de garrafa, suas gorduras saltando para fora da calça, que era ainda mais exigente com a dor.

Controlou-se para tentar sentir o segundo passando. Fechou os olhos para se concentrar no baixo e na guitarra que entravam pelos fones de ouvido, no presente do presente do presente do presente. Queria receber o presente, e agradeceria. That´s why they call it present. Queria ser livre. Por alguns segundos, ouviu o que chamou de A PERCEPÇÃO PLENA DO UNIVERSO. Aqueles segundos de sabedoria compacta, que passam antes de o cérebro perceber que chegaram. Da liberdade gratuita. Como naquele dia em que viu raios de sol batendo no sofá, iluminando a poeira branca, dançando no ar. Conseguiu ouvir cada nota como viu cada poeira iluminada. Com calma, uma ausência de ansiedade só presente em seus estados de mais pura sonolência. Esse era seu segredo. Sua fórmula mágica. Só deixaria de tremer se encarasse de frente. Deixaria de tremer quando firmasse o punho e batesse forte. Se virasse para os monstros que a censuravam e dissesse FODA-SE. Não iria cair e, se caísse, o chão não era tão ruim assim.