segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Manual do crescimento

Este Lado do Paraíso, F. Scott Fitzgerald

Monsenhor Darcy convidou Amory para passar uma semana no palácio Stuart, junto ao rio Hudson, durante o Natal, e lá os dois tiveram prolongadas conversas ao pé da lareira. Monsenhor estava ficando um tanto corpulento e sua personalidade acompanhava aquela expansão. Amory sentiu segurança e conforto em refestelar-se numa poltrona bem macia e em fumar com ele um charuto, hábito tão saudável na meia-idade.
“Tenho pensado em deixar a universidade, monsenhor”.
“Por quê?”
“Minha carreira está se dissipando no ar, como fumaça; o senhor poderá achar que isso é trivial, mas...”.
“Trivial? De modo algum. Penso que é extremamente importante. Quero que você me conte tudo que andou fazendo, desde a última vez que nos vimos”.
Amory assim o fez. Narrou, com todos os pormenores, a destruição provocada por seus procedimentos egoístas. Daí a meia-hora, o tom apático com que se exprimia mudou.
“Não sei, não. Gosto de viajar, mas evidentemente essa guerra cansativa me impede. De qualquer modo, minha mãe detestaria que eu não me formasse. Sinto-me perdido. Kelly Holiday quer que me aliste com ele no Esquadrão Lafayette.”
“Você mesmo sabe que não gostaria de ir”.
“Sim, algumas vezes sei, mas hoje iria em um segundo”.
“Bem, para isso você teria de estar muito mais cansado da vida do que penso que está. Eu o conheço”.
“Receio que sim”, concordou Amory com relutância. “É que isso me pareceu o modo mais fácil de me livrar de tudo, especialmente quando penso em mais um ano inútil, sem o menor interesse, na universidade”.
“Sim, eu sei, mas para dizer a verdade não me preocupo com você. Parece-me que está realizando progressos, e com a maior naturalidade.”
“Não”, retrucou Amory, “em um ano perdi metade de minha personalidade”.
“De modo algum”, disse monsenhor, em tom zombeteiro. “O que você perdeu foi apenas uma bela carga de vaidade”.
“Antes fosse! De qualquer modo, sinto como se tivesse repetido o ano mais uma vez em St. Regis”.
“Não.” Monsenhor balançou a cabeça. “St. Regis foi uma falta de sorte, mas a universidade lhe tem feito bem. Qualquer coisa válida que possa acontecer não será através dos canais que você andou buscando no ano passado”.
“Mas o que poderia ser mais inútil do que a minha atual falta de entusiasmo?”
“Talvez a coisa em si... mas você está progredindo. Isso lhe deu tempo para pensar e você está desvencilhando-se de boa parte de seus conceitos sobre fazer sucesso, ser um super-homem etc. Pessoas como nós não podem adotar teorias em bloco, conforme você fez. Se pudermos pôr em prática o próximo objetivo que nos interessa e se pudermos dedicar uma hora por dia para refletir sobre ele, realizaremos coisas maravilhosas. No entanto, faremos papel de idiotas se nos entregarmos a qualquer esquema ditatorial que envolva submissão a uma dominação absoluta”.
“Mas, monsenhor, é esse próximo objetivo que eu não consigo pôr em prática.”
“Amory, cá entre nós, só muito recentemente é que eu aprendi como agir neste sentido. Há mil coisas que eu consigo fazer, além do próximo objetivo, mas é exatamente isso que me bloqueia, exatamente como a matemática me bloqueou na universidade.”
“Mas por que devo realizar meu próximo objetivo? Nunca me parece o tipo de coisa que eu deva fazer”.
“Temos de fazer, pois não somos personalidades, mas personagens”.
“Boa fala, mas o que o senhor quer dizer com ela?”
“Personalidade é aquilo que você julgava ser, aquilo que esse Kelly e esse Sloane, de quem você me fala, evidentemente são. Personalidade é quase inteiramente uma questão física. Ela rebaixa as pessoas sobre as quais atua e muitas vezes eu a vi desvanecer, por exemplo sob uma prolongada doença. Mas enquanto uma personalidade é ativa, ela ignora o ‘próximo objetivo’. Um personagem, por outro lado, aglutina. Nunca se pensa nele à parte daquilo que realizou. Ele é uma viga-mestra, na qual foram dependuradas milhares de coisas, às vezes coisas brilhantes, como são as nossas. Ele, porém, usa-as com fria determinação.”
“Várias de minhas possessões mais brilhantes me fizeram falta quando eu mais precisava delas.”
“Precisamente. Isso acontece quando você sente que seu prestígio e seu talento se acumularam e você não precisa se preocupar com quem quer que seja. Pode lidar com as pessoas sem a menor dificuldade.”
“Mas, por outro lado, não possuo nada, estou desamparado!”
“De modo algum!”
“Bom, não deixa de ser uma idéia.”
“Você tem tudo para começar bem e é uma condição que Kelly ou Sloane, por razões estruturais, jamais terão. Livrou-se de três ou quatro coisas supérfluas e, num momento de capricho, desfez-se de tudo o mais. O importante agora é apropriar-se de coisas novas e quanto maior for o alcance de sua visão, nesse ato de apropriação, melhor para você. Lembre-se, porém, do próximo objetivo!”
“Como o senhor deixa tudo tão claro!”
E assim dialogavam, muitas vezes a respeito de si mesmos e outras sobre filosofia, religião e também sobre a vida como jogo ou mistério. O sacerdote parecia adivinhar os pensamentos de Amory antes mesmo que se tornassem claros para o jovem, a tal ponto suas mentes estavam sintonizadas.
(...)
Após voltar à universidade, Amory recebeu várias cartas do monsenhor, que lhe forneceram mais combustível com que alimentar seu egocentrismo.

Receio ter lhe dado excessivo apoio em relação à sua inevitável segurança, mas deve lembrar-se que agi assim devido à fé nos esforços que você empreende e não movido pela total convicção de que triunfará sem muito lutar. Precisará reconhecer que existem certas nuances em seu caráter, mas deve tomar cuidado em confessá-las para os outros. Você não é nada sentimental, é quase incapaz de afeto, é astuto, sem ser matreiro, vaidoso, sem ser orgulhoso.
Não se permita o sentimento de inutilidade. Muitas vezes, ao longo da vida, você estará em seu pior momento quando tiver sua pessoa no mais elevado conceito. Não se preocupe em perder sua “personalidade”, como insiste em chamá-la. Aos quinze anos você possuía o esplendor da alvorada, aos vinte começará a ter a cintilação melancólica da lua e quando chegar à minha idade irradiará, como eu irradio, o dourado e genial calor do início do crepúsculo.
Se acaso me escrever, deixe que suas cartas sejam naturais. A última delas, seu ensaio sobre arquitetura, era detestável e de tal modo empolada que eu o visualizo vivendo em um vácuo intelectual e emocional. Cuide de não tentar classificar muito definidamente as pessoas em tipos. Descobrirá que, durante toda sua vida, elas persistiram, de maneira muito tediosa, em saltar de uma classe para outra, e ao aplicar um rótulo desdenhoso em todo mundo estará prendendo um boneco de mola numa caixa, que saltará e zombará de você quando começar a manter, com o mundo, um contato realmente antagônico. Idealizar um homem da estatura de um Leonardo da Vinci seria uma referência mais valiosa no momento que você está vivendo.
Você está sujeito a elevações e quedas, conforme aconteceu comigo em minha juventude, mas mantenha a clareza de espírito e, se acaso tolos ou sábios ousarem criticá-lo, não se culpe excessivamente.
Você afirma que a convicção é aquilo que o mantém verdadeiramente íntegro nesta “proposta feminina”, porém é mais do que isto, Amory. É o receio de não poder interromper aquilo que iniciou. Se isso acontecesse, você se desorientaria e sei do que estou falando. Trata-se daquele sexto sentido, meio milagroso, por meio do qual você detecta o mal, é aquele temor a Deus, do qual você se dá conta em parte, e que reside em seu coração.
Qualquer que seja o caminho que venha a seguir – religião, arquitetura, literatura – tenho plena convicção de que estaria muito mais seguro ao apoiar-se na Igreja, porém não colocarei minha influência em risco argumentando com você, embora, no íntimo, esteja convencido que o “abismo negro de Roma” se abre diante de sua pessoa. Não demore para escrever-se

Lembranças afetuosas
THAYER DARCY